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Personagens Inesquecíveis de São Paulo

ESCOLA CONTEMPORÂNEA DE ARTE

DE SÃO PAULO

Eunibaldo Tinoco de Souza

Um dos brasileiros mais extraordinários que conheci no começo da década de 60 em São Paulo foi o baiano Eunibaldo Tinoco de Souza, brilhante artista plástico e ótimo desenhista de publicidade.


Foi por recomendação de vários amigos que visitei a então Escola Contemporânea de Arte, com sede na Rua 24 de Maio, recentemente fundada por Eunibaldo. La eu tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente naquela bela tarde da primavera paulistana. Simpático, alegre e dono de boa cultura, nós nos entendemos imediatamente, a tal ponto que confessou ainda não ter no quadro docente um professor de Historia da Arte para sua Escola e perguntou se eu estaria interessado em ocupar aquela cátedra.


Aceitei em seguida, e acabei passando alguns bons anos, diga-se de passagem, inesquecíveis, na escola do Tinoco. Entre meus alunos alguns eram de origem bem humilde como a costureira Toyoko e o office-boy Zeca, outros da querida família alemã Dohme e da italiana Raineri que dentre tantos outros formavam um belíssimo mosaico racial e social. Sempre com grande alegria e unidos no ideal da arte e da música clássica, que constituíam as duas vertentes da nossa proposta pedagógica, convivíamos intensamente durante o período das aulas daquela matéria por mim ministrada.


Lembro claramente e com emoção, ao final do primeiro biênio, a entrega dos Diplomas. Foi inesquecível ver a costureira, o office-boy entre tantos outros caros alunos, apertar junto ao coração o Canudo de Arte da Escola.

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Com a mudança sócio-cultural e econômica paulistana, Tinoco fechou a Contemporânea de Arte, mudou-se para o Estado do Espírito Santo, aonde veio a falecer, infelizmente, na década de oitenta, se não me falha a memória.


Tenho gratas lembranças porque Ele fixou em meu coração e em minha mente, a lembrança de um baiano e um brasileiro extraordinário, educador de ponta que, sem dúvida, fez historia na Arte e na Cultura Paulistana e Brasileira. Sempre esteve na direção oposta da aridez alienante da atualidade, onde a marca de um celular é notícia mais importante do que Leonardo, Villa-Lobos e Beethoven, que nós, Tinoco e eu, ensinávamos a conhecer e entender na gloriosa Contemporânea de Arte da Paulicéia daquele tempo.


Hoje em dia temos os modismos passageiros dos Formadores de Opinião, enquanto que a Escola do Tinoco educou um grupo de preciosas pessoas, fazendo sim historia neste país e por mim e tantos outros nunca será esquecido.


Adriano Colangelo

A DOCE MOCINHA DA CHUVA

A doce mocinha da chuva

Numa das primeiras tardes da luminosa primavera paulistana dos anos 60, conheci uma delicada mocinha de segura ascendência indígena, pequena, graciosa, de cabelos pretos e lisos, pele delicada cor moreno-dourada, de passos leves e deslizantes. Ela tinha a surpreendente particularidade de aparecer no centro da cidade sempre no horário da chuva, uma inesquecível característica das tardes paulistanas de então. Estas chuvas tinham horário preciso: iniciavam lá pelas 16horas e terminavam meia hora depois. Esse fenômeno era tão corriqueiro que a gente marcava alguns encontros para: “Depois da Chuva”.

Era certo que, com os primeiros pingos da chuva, surgia a encantadora indiazinha já meio molhada, com a camiseta colada ao corpo, cabelos emoldurando o rosto no qual brilhavam dois olhos negros como jabuticabas e uma boca pequena, levemente carnuda e docemente sensual.

Muitas vezes nossos horários coincidiam naquelas deliciosas tardes de forma que acabamos fazendo amizade. Ela era de poucas palavras, porém cordiais. Nos curtos diálogos revelou a razão daqueles seus passeios na chuva, falando sempre com uma voz firme, porém, com nuances lânguidas e palavras bem destacadas: " Gosto de sair na chuuuva, pooorque eu nasciii e viviii na fazenda dos meus pais. Aqui estttou fazeeendo um curso muito legal de fotografia. Saaaio na chuva, porque lembra meu canto e minha vida no mato, que eu tanto adoro. Eu sempre saía nas chuvas dos verões de lá. Sacooou? "

E assim, molhada, ela continuava sua caminhada com passinhos de jovem corça, bem brasileira.

Essas tardes gloriosas da primavera e verão paulistanos eram ornadas de nuvens brancas e acinzentadas, com pinceladas amarelas dourando os

pingos de água que logo eram afugentados pelos rasgos de céu azul e com o sorriso da menina da chuva ao olhar para o alto...

Certo dia, infelizmente, não choveu mais à tarde. A mocinha sumiu, com certeza levando consigo aquele toco de romantismo verde-amarelo daquela São Paulo. Teria sido por ordem de Gaia, a Mãe Terra? Teria o progresso destruído os recantos da beleza e da civilização? O que restou?

Recordo ainda que um sambista muito sensível, que talvez a conheceu, compôs um belo samba-canção cujo titulo, se bem me lembro, era: “Moça Triste da Chuva”.

Quem sabe alguém tente descobrir a música para juntá-la com esta crônica e eternizar como uma bela aquarela, todas aquelas personagens: o horário das quatro da tarde, as nuvens brancas e acinzentadas, a chuva forte e morna, o sol amarelo, o céu azul e uma amável “Bambina” andando naquele palco da velha São Paulo.

Adriano Colangelo

O MAESTRO ITALIANO MARIO FERRARO

Maestro Mario Ferraro

Nos idos anos de 1960 e 1970, se não me falha a memória, a Fundação Armando Álvares Penteado organizou uma orquestra sinfônica juvenil e contratou para regê-la, o Maestro Italiano Mario Ferraro.


Em pouco tempo o Maestro Ferraro, depois de muitos ensaios com aqueles jovens músicos, apresentou um repertorio inédito para aqueles tempos paulistanos com a introdução de belas e originais partituras dos grandes compositores russos: Sergej Prokofiev, Aram Khachaturian e Dimitri Kabalevskj; o italiano Ottorino Respighi e vários outros compositores clássicos.


Esses deliciosos saraus aconteciam aos sábados à tarde, por volta das 16 horas, ora no salão interno da fundação e outras

vezes no amplo espaço da entrada daquele belo edifício. Concretizava-se aí um admirável exemplo não somente de educação musical, mas de um humanismo profundo pois era accessível a todas as classes sociais que quisessem se entregar ao deleite da música.


Eu que freqüentei assiduamente aqueles concertos, sob a direção daquele ótimo maestro, tenho deles uma esplêndida recordação. Quem sabe, alguém possa pensar em recompor a orquestra sinfônica juvenil e embelezar novamente as tardes dos sábados como brilhantemente fez o Maestro Ferrraro e seus jovens pupilos.


Adriano Colangelo

O GARÇON AUSTRÍACO DA CONFEITARIA VIENENSE

Garçom Austríaco

Nos gloriosos e deliciosos tempos do fim da década de 1950, o centro da cidade de São Paulo era um lugar agradabilíssimo. A região se estendia a partir do Largo do Arouche, atravessava a super ecológica Praça da República e, finalmente, num grande e circular abraço, incluía a então elegante Barão de Itapetininga, as ruas vizinhas a ela, a área da Biblioteca Municipal, a Rua Bráulio Gomes e a chiquérrima Avenida São Luis.

Não podemos esquecer o tradicional “Paribar”, dirigido pelo saudoso e italianíssimo Lello. Este era o lugar de encontro de artistas como o pintor dinamarquês Moby, o escritor brasileiro José Mauro De Vasconcellos que atracava ali com “Rosinha”, sua bela canoa, e, tantos outros nos quais eu me incluía acompanhado sempre pelas baforadas do meu cachimbo Savinelli, cujos perfumados vapores perturbavam as graciosas mocinhas ao sairem dos escritórios da Rua Sete de Abril e de outros locais de trabalho.

A gente se encontrava por aí após a chuva tropical das tardes da primavera/verão, por volta das 16h30min, quando o Sol afastava as nuvens molhadas e iluminava todo o centro, com uma belíssima música de fundo entoada pelas mais diversas espécies de pássaros da Praça da República. Incluído neste coro, vejam só que loucura, uma feroz araponga, que, por safadeza, com seu estridente canto tentava abafar os violinos, as flautas, os sopranos e os tenores dos entusiastas músicos da orquestra passaresca.

Entre tantos lugares agradáveis da cidade daquele tempo, um deles tornou-se meu predileto: a Confeitaria Vienense da Rua Barão. Situada no primeiro andar de um prédio quase em frente a Galeria Califórnia, muito bem decorada, com divisórias de madeira e assentos em couro, tudo muito confortável, serviam sobretudo chás, cafés vienenses, doces e tortas de vários tipos e, sobretudo o verdadeiro “Apfelstrudel” que é a lendária torta de maça, austríaca.

Na Confeitaria atendiam no máximo dois garçons e o chefe que era um senhor vienense, alto, muito magro, silencioso, loiro de olhos azuis e muito, mas muito educado, de serviço perfeito e sempre com um discreto sorriso nos lábios.

Imaginem que, no fim da tarde, mais ou menos lá pelas 18 horas, chegavam dois ou três músicos também austríacos. Um deles com um violino, outro com cello e o terceiro ao piano, executavam um belo repertorio que alternava valsas de Strauss, Arias delicadas de Mozart e trechos do melhor romantismo alemão tal como Schubert e Schuman e de vez em quando o “rei das operetas”, isto é Franz Lehar...

Outro detalhe fantástico era que a Confeitaria não tinha somente uma ótima freqüência de público, mas o fato de que se abriam os vastos janelões proporcionando que os transeuntes pudessem ouvir aquelas melodias tocadas no recinto. Muitas vezes as pessoas paravam no meio da rua ou se apoiavam nas paredes do prédio da própria confeitaria, regalando-se com um pouco de paz, de boa música e de poesia. Isso ocorria não somente com freqüentadores da Casa, mas também com pessoas, muitas vezes de origem humilde que por ai passavam e se enriqueciam com aqueles momentos de pura magia musical.

Pergunto: e atualmente?

Melhor não falar... A realidade dos monótonos celulares foi preferida às melodias de Mozart e às valsas de Strauss.

Sinal dos Tempos...

Adriano Colangelo

AS SFOGLIATELLAS DE SALVATORE



Era uma daquelas típicas tardes do outono paulistano, isto é, iluminadas pelo fulgurante sol tropical, mas ao mesmo tempo refrescada por um ventinho suave que compensava muito bem a força dourada do astro diurno.


Estava eu brincando com meus filhos na soleira de casa, ao mesmo tempo nos preparando para apreciar um belo crepúsculo, por sinal bem típico daquela estação do ano em São Paulo.


A rua de casa, naquele distante dia da década dos anos ´70, era, em realidade, uma pequena ladeira , com graciosos sobrados de ambos os lados, construídas sobretudo por emigrantes italianos, espanhóis e portugueses e que, por isso, lembrava muito bem um bairro europeo.


A uma certa hora notamos a silhueta de um velhinho, atarracado, robusto e que, aproximando-se de nos com um sorriso,carregava, de baixo do braço,uma cesta de vime, ornamentada de uma graciosa toalha de algodão com desenhos muito bonitos de margaridas e indicando, pelo conjunto todo, a sua origem européia, talvez aquela de um emigrante mediterrâneo.Interpelando-me educadamente me perguntou, num português um pouco carregado porem correto, se eu queria adquirir algum doces caseiros.Antes de lhe responder o observei atentamente e apreciei um belo rosto bronzeado, moldurado por cabelos brancos curtos e bem aparados , um par de bigodes bem ralinhos e finalmente dois olhos azuis muito bonitos que, junto com um simpático sorriso, irradiavam uma bondade e uma paz pouco comuns.Toda a sua pessoa e o comportamento dele evocavam, dentro de mim, algo profundamente familiar, de conhecido, de misterioso e de muito doce ao mesmo tempo; comecei então a procurar nas minhas lembranças de historia da arte e então, muito surprendido, me lembrei dos pequenos bronzes, de temas eminentemente populares, do grande Vincenzo Gemito, escultor incomparável de uma Napoli mítica, infelizmente so´presente na historia e em nossos corações.


Muito emocionado, lhe perguntei sua origem e ele me respondeu, sempre sorridente e com simplicidade, que ele era italiano; eu com uma explosão de alegria respondi-lhe que eu o era também, nos abraçando em seguida e perguntando-nos de qual região de nossa terra.Então ele, no inconfundível dialeto do Salento e da Basilicata, comum em alguns membros da minha família, me respondeu assim:”Paisá, so´campano de lê muntagne vicine Beneviente”, isto é”Paesano-conterraneo-sou campano-da região da Campânia-la´das montanhas de Benevento”, uma pequena cidade da província .Contou-me então que estava em São Paulo há trinta anos, era casado com uma camponesinha de sua região mas sem filhos.Moravam perto de uma irmã casada cujo filho estava estudando medicina na melhor faculdade local , com muito sacrifício de toda a família.


Finalmente e por causa da pressão de meus moleques, abriu a cesta e mostrou uma boa quantidade de “Sfogliatelle riccie e frolle”, dois tipos característicos daquele doce, muito bem arrumadas por dentro e indicando, com certeza, a mão feminina naquela bonita disposição.Minha emoção foi muito forte, porque eu sentia, nas minhas narinas e sobretudo no coração, o perfume daqueles doces tão peculiarmente napolitanos que abriram, como um antigo leque que se descobre na gaveta de um armário de um passado tão amado, uma serie de recordações de Napoli, de seus bairros, de sua gente tão laboriosa e dos cantos dos pescadores .E´evidente que eu as comprei todas, pode-se imaginar com que farra dos meus moleques, as levei para cozinha e convidei o paisano para nos fazer companhia e contar mais da sua historia.Ele se chamava Salvatore e não tinha outra atividade a não ser aquela de vender, de porta em porta diga-se de passagem, sobretudo nos bairros emigrantes de origem meditarranea, aquelas sfogliatellas que a sua querida camponesinha preparava para ele no fundo de sua casinha.O incrível desta historia que ele estava nos contando era o fato de ele levar não somente aqueles doces únicos para vender para outros emigrantes e ganhar a vida heroicamente, mas também de despertar uma indescritível alegria para mecânicos calabreses, sapateiros salernitanos,, alfaiates avellineses e tantos outros mais que aproveitavam aqueles memoráveis encontros para recordar a pátria, as pequenas cidades de província, os dialetos, as”pagnotte-panhotas-paes redondos” as douradas genestas-flores silvestres- na beira das pequenas estradas de terra e as belas garotas da ensolarada juventude da terra de todos eles.


Assim sendo Salvatore e suas sfogliatellas se transformavam numa ponte social com a Mãe Pátria, mantendo viva a ligação com o solo pátrio, com a Amada Gaia-Mãe Terra- de todos nos, recordando, com altivez e muita dor ao mesmo tempo, tudo aquilo que nos tínhamos deixado e que estava dramaticamente vivo em nossos corações.E Salvatore então reacendia aquela chama toda quando ele batia na porta de casa e do coração quando com humildade e um luminoso sorriso nos lábios oferecia aquele precioso manjar, que refletia com sua cor amarelada o Sol da Pátria e seguramente, com a cor marron da mesa, Alguém que milênios atrás, ensinou a dividir o pão com os outros.


Alem do mais, outro grande aspecto daqueles encontros era a possibilidade não somente de falar italiano, mas também de reativar os dialetos de cada uma, sobretudo o grego/latim em algumas expressões, o apulo/salentino, o lucano, o napolitano, o pugliese da Apulia e até fragmentos incríveis de expressões sannitas e dos antigos Abruzzeses. E também gostaria de apontar outro aspecto notável que aquele adorável velhinho despertava em todos nos: a aproximação profundamente social e humana entre eu, artista plástico e estudioso de arte junto com outros queridos irmãos do Sul de todas as origens sociais possíveis e que fazia nascer novas amizades, visitinhas que começavam com assuntos genéricos para depois converger em acirradas discussões regionais que, por sua vez, levavam ora ao Leonardo ora ao Verdi, para extrapolar nas figurinhas de bronze de Vincenzo Gemito, nas poesias dialettais de Salvatore di Giacomo ou, para ficar logicamente com um nó na garganta, nos cantos dos pescadores sicilianos, estes levados para o mundo afora pelo inesquecível Domenico Modugno.Naquelas alturas a presença, sempre desejada, de Salvatore e suas sfogliatellas, ele tinha que se desdobrar para que ninguém deixasse de levar sua parte de doces e de perfume peninsular para casa, para evitar ofensas terríveis para quem quisesse querer a mais.Além de tudo, nos comoveu mais ainda o fato que todos nos comprando semanalmente toda a produção de sfogliatellas o estávamos ajudando a pagar a prestação da faculdade de medicina do jovem sobrinho.Em virtude disso criou-se uma ligação sócio-antropologica única entre nos, que se traduzia numa responsabilidade coletiva de nossa pequena comunidade emigrante compensada não somente pelas lendárias sfogliatelas de Salvatore, mas da sua humanidade e simplicidade que teriam indiscutivelmente inspirado as criações de um Pasolini, de um Guttuso ou de um Tornatore e que se constituíam num símbolo belíssimo e único de amor ao próximo, cujo denominador comum era ele e a Pátria distante.


Mas chegou um dia no qual nos começamos a nos preocupar seriamente com ele, porque era um tempão que o querido Salvatore não aparecia. Reunimos-nos então na pequena loja de um velho alfaiate napolitano, para trocar idéias entre nos e tomar as devidas providencias; então descobrimos que apenas um de nos, um mecânico de automóveis de nome Michele, sabia o endereço dele, por morar pertinho. Decidimos, por esta razão que ele devia procurar o Salvatore porque, naqueles tempos distantes, todos nos éramos empenhados com o nosso trabalho em pontos longínquos um do outro.

De fato o dia depois Michele nos telefonou, solicitando um encontro urgente na alfaiataria de Vincenzo para nos falar do querido Salvatore, já um emblema para todos nos.


Quando finalmente nos encontramos na lojinha, logo nos percebemos que alguma coisa grave tinha acontecido com o Salvatore.Com a voz em soluços, cabisbaixa e conseguindo com muita dificuldade se manifestar , Michele nos disse que um infarto fulminante tinha truncado a vida daquele doce velhinho que, depois de se despedir da sua querida colona, do amado sobrinho e de algum vizinho presente, mas sorridente e sereno como sempre, nos mandou o seguinte recado, de indescritível beleza, dignidade e singeleza:”Me façam um favor, falem para os rapazes que eu estou muito bem porque finalmente eu estou voltando para Itália...”

Alguém lendo esta minha crônica de vida, que me fez muito mais rico do que antes porque a vivi com total plenitude, poderá pensar que tudo isso, no fundo, são emoções ultrapassadas de italianos do sul muito chorões e “não atualizados” nos seus conteúdos. Ao contrario, eu quero afirmar que a nossa Itália Meridional é um estado de espírito profundamente sólido dentro de nos como um mito que ninguém, mas ninguém mesmo pode nos tirar, num estado de alma muito parecido com aquele descrito pelo grande poeta brasileiro Catulo da Paixão Cearense que retratou, por assim dizer, aqueles que têm coragem de aceitar o sofrimento e transforma-lo em amor fraterno ou naquele outro, muito mais duro de aceitar, que é o Amor para com a Pátria distante, no seguinte, inigualável verso: “Rasga o coração e encontrarás a dor” E que esta dor, fogo que arde de dentro, mas que depois ilumina o outro irmão e irmãs de nossa gente é Amor verdadeiro, redondo, sem arestas e racismos de qualquer espécie; ao contrario todas aquelas sfogliatellas de Salvatore criaram um mosaico multicolorido de pessoas simples, num excepcional mural de humanidade, dor, nostalgias e gratidões pelo simples fato do outro existir.


Como demonstrou aquele grande artista da alma que foi Salvatore com suas sfogliatellas, autor majestoso e nobre daquele mural tão rico de afetos, alegrias e fortes recordações.


Obrigado, Senhor, por me doar esta excepcional lição de Amor e de Humanidade, que agora faz parte de meu patrimônio interior.

Adriano Colangelo

01/12/2015

ZÉ DO RÁDIO

Quando cheguei a São Paulo no ano de 1956, duas coisas me chamaram muito a atenção: a total ausência de galerias de Arte e a interessante diversidade das pessoas no centro da cidade, sobretudo a região das ruas Barão de Itapetininga, Marconi, Dom José de Barros, Avenida São Luiz, Rua Direita e finalmente um mosaico fantástico de personagens, os mais diversos imagináveis, do Viaduto do Chá.

Dessa galeria de imagens do passado, escolhi como primeira personagem a ser carinhosamente lembrada, aquela do incrível jornalista-locutor, comentarista esportivo anônimo e independente que, se não me falha a memória, costumavam chamar de “Zé dos Jogos Passados”.

De estatura bem miúda, pele morena, narigudinho, com um pouco de retro prognatismo, sempre muito bem vestido, Zé era dotado de uma memória excepcional, parecia possuir um verdadeiro gravador biológico em seu cérebro. Lembrava-se, com incrível clareza, de jogos de futebol de meses ou anos passados, sobretudo dos times do eixo Rio/São Paulo, tais como: Santos, Palmeiras, Flamengo, Fluminense, São Paulo ou Guarani de Campinas.

Apresentava-se ao ar livre, sempre no centro da cid

ade, dando preferência para a Rua Barão de Itapetininga, onde, parando de improviso, anunciava num português perfeito e com a voz um pouco em falsete a apresentação daquele dia, onde traria à tona os principais momentos de um determinado jogo ocorrido há algumas semanas, senão meses atrás.

Imediatamente uma multidão corria para perto dele, disputando os lugares mais próximos para ouvi-lo avidamente. Iniciava então a locução com: os dribles de Pelé; as investidas do Toninho guerreiro; as elegantes passadas de Ademir da Guia ou as acrobáticas defesas de Gilmar.

Os momentos mais empolgantes das suas crônicas, historicamente corretas e ao mesmo tempo evidenciando excepcional documento de autêntico teatro de rua, aconteciam quando, segurando ou disparando rapidamente sua voz esganiçada, anunciava o golaço de um daqueles fabulosos craques da época. A multidão explodia com grande entusiasmo revivendo com aquele personagem singular, conhecido e respeitado por todos, um momento de magia e de emoções únicas, um pequeno sonho do passado futebolístico.

O outro lado daquelas crônicas do Zé do Rádio era o seu público heterogêneo: office-boys, contínuos, comerciantes, balconistas e até alguns executivos de bancos e pequenas lojas das redondezas. Todos, por mérito daquele poeta-locutor anônimo, relembravam os sonhos gerados por um drible fantástico do Garrincha ou uma cobrança de falta do grande Pepe do Santos.

Sonhos do Kurosawa? Não. Apenas alguns pequenos momentos de poesia esportiva criados por um precioso homenzinho do povo, cujos gritos de gooool rememorando jogos por vezes já esquecidos, tornaram aqueles fragmentos de história paulistana não somente uma recordação inesquecível dos meus primeiros passos nesta cidade, mas sim, umas belíssimas páginas de humanidade, que, talvez, tenham sido eternizados também pelo talento do grande Plínio Marcos que, certa vez surpreendi gritando gooool bem perto do Zé do Rádio.


Adriano Colangelo

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